A Pesquisa de Elisabete Oliveira
Elisabete Regina de Oliveira é graduada em educação, sexualidade, diversidade sexual e relações de gênero. Ela foi a primeira pessoa no Brasil a pesquisar profundamente a assexualidade. Defendeu sua tese sobre o tema na USP, Universidade de São Paulo, em 2014. Agora ela conta para nós como foi o processo de pesquisa.
Quando iniciei minha pesquisa de doutorado sobre a assexualidade, em 2009, eu não via a menor possibilidade de conseguir pessoas dispostas a dar entrevistas para a pesquisa. Isso porque, naquela época, havia somente alguns grupos de "assexuados" - era assim que se autodenominavam naquela época - no falecido Orkut. Os membros desses grupos escondiam-se atrás de pseudônimos e avatares. Era impossível conhecer sua identidade, estabelecer um contato para apresentar a pesquisa. Para mim, era angustiante imaginar a opressão enfrentada por essas pessoas, que as levava a uma existência virtual anônima.
Isso começou a mudar quando coloquei no ar o Blog Assexualidades, que tinha o objetivo de difundir a escassa pesquisa acadêmica sobre a assexualidade sendo desenvolvida no exterior. Só após o lançamento do blog é que as pessoas assexuais foram se aproximando, me procurando, me escrevendo, mostrando-se surpresas e felizes em saber que havia uma pesquisa acadêmica sobre a assexualidade em andamento no Brasil, oferecendo sua contribuição para tornar a pesquisa possível. No final, consegui 40 voluntários de todo o Brasil! A cada e-mail que recebia, fui conhecendo melhor a opressão, o sofrimento que muitos deles enfrentavam na sociedade. O sofrimento que os levava a viver "no armário", tanto na vida real como no mundo virtual.
À primeira vista, parece que as pessoas assexuais não sofrem a mesma opressão que a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros - LGBT. Mas uma das primeiras coisas que descobri quando comecei a pesquisa é que muitos assexuais são homorromânticos, birromânticos, pan-românticos e transgêneros. Ou seja, existe uma população assexual que se relaciona romanticamente com o mesmo sexo, estando portanto, sujeitas às mesmas discriminações que os LGBTs sofrem. Isso porque, se houver um casal homorromântico andando de mãos dadas na rua, este corre o mesmo risco de sofrer violência e discriminação por causa da homofobia. Isso ocorre porque em nossa sociedade existe a PRESUNÇÃO da atividade sexual para todas as parcerias românticas. O sexo é privado, ninguém sabe o que os casais fazem entre quatro paredes. Mas o relacionamento é público, e como existe a presunção da atividade sexual, essa presunção também vale para casais homorromânticos. Sexo entre iguais é intolerável para os setores conservadores da sociedade; amor, então, nem se fale! Entre os meus entrevistados - independente da orientação afetiva - quase todos enfrentaram homofobia em algum momento da vida, por serem percebidos como homossexuais, mesmo não sendo. Na lógica da sociedade, se não é hétero, só pode ser homo. Além disso, uma mulher transexual assexual no espaço público, corre o mesmo risco de outras transexuais e travestis de sofrer de violência, insultos e discriminação.
Aí, temos os heterorromânticos. Muita gente pensa que esses são os assexuais que menos sofrem opressão quando estão em parceria amorosa. De fato, o casal heterorromântico não vai sofrer violência se estiver andando de mãos dadas na rua. No entanto, sua autoidentificação assexual - se resolverem "sair do armário" - não será compreendida pelos amigos, família e sociedade. Como existe a presunção da atividade sexual, se eles nunca se identificarem publicamente como assexuais, nunca serão questionados, pois todos pensarão que eles fazem sexo. Porém, a falta de desejo sexual e interesse por sexo ainda é patologizada em documentos importantes como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Dou como exemplo didático, um casal casado, no qual um deles seja assexual e não pratique sexo com o parceiro. O parceiro assexual pode ser acusado pelo cônjuge de ter um transtorno mental que o cônjuge desconhecia antes do casamento, (o chamado no Direito de erro essencial). Isso dá base para a anulação do casamento, por incrível que pareça. Isso decorre da norma que estabelece que todo casal faz sexo. Ainda que possa haver dúvida quando são solteiros, quando se casam a presunção de sexo é de 100%.
E os arromânticos e arromânticas? Esses assexuais são cobrados desde muito cedo o interesse pelo sexo oposto. Eu entrevistei mulheres assexuais que me contaram que nunca se identificaram com parcerias amorosas. Uma delas me contou que desde criança, quando ela ia em casamentos, ela não via nenhum sentido naquilo, ela sabia que nunca iria se casar. Mas os adultos costumam dizer para a criança que isso vai mudar quando eles crescerem. Entram na adolescência vendo os amigos e amigas se interessarem por namorados, e podem sentir-se esquisitos, isolados, estranhos por não sentirem a mesma inclinação. Embora possa não haver uma pressão interna, existe uma forte pressão externa pela conformação ao padrão. Uma das mulheres arromânticas que eu entrevistei me contou que durante a adolescência, ela disse aos pais que não queria namorar para se dedicar inteiramente aos estudos. Na escola, ela era vista como nerd. Os pais tinham muito orgulho do sucesso acadêmico da filha e ela foi levando a vida até o final da faculdade. Quando se formou, conseguiu um ótimo emprego, aí começaram as cobranças dos pais que queriam um genro e netos. Esta jovem atingiu um grande sucesso profissional e material, viaja pelo mundo, escreve livros, dá palestras, mas quando vai visitar os pais, eles não perguntam sobre suas vitórias, mas perguntam se ela tem namorado, quando vai casar e ter filhos. Nenhuma de suas conquistas é valorizada porque ela não se casou e não teve filhos.
Os homens não têm tanta sorte na adolescência, ou seja, não têm a sorte de poder dizer para todo mundo que não vai namorar porque querem se concentrar nos estudos, pois os meninos - ao contrário das meninas - são encorajados a buscar sexo desde muito cedo; sofrem pressão dos amigos, do pai, dos tios, dos primos. O modelo de masculinidade hegemônica exige que os homens tenham forte interesse por sexo. Portanto, a masculinidade assexual seria considerada uma masculinidade menor, em comparação com a masculinidade hegemônica. E a feminilidade assexual que não deseja casamento e maternidade também sofre grande pressão e é considerada uma feminilidade menos feminina, pois casamento e maternidade ainda têm o status de missão de perpetuação da família nuclear tradicional e de ser o maior "sonho" de todas as mulheres.
Por último, um outro tipo de opressão relatada por meus entrevistados é a expectativa da atividade sexual por parte do parceiro não assexual. Para alguns e algumas, a ideia do sexo é muito problemática, causa angústia, tristeza. Muitos e muitas me contaram que foram abandonados/as pelos/as parceiros por não conseguir corresponder à expectativa. Algumas mulheres me relataram seu medo de nunca encontrarem um homem que as aceite como são. Não foi surpresa constatar que dos meus 40 entrevistados, mais de 80% não tinham uma parceria amorosa na época da entrevista. Mas nem todos se sentem infelizes com isso.
Portanto, os quatro pilares da sexo-normatividade, estabelecem padrões sociais opressores sobre as pessoas assexuais, conforme os exemplos mencionados, extraídos da minha pesquisa.
Nosso agradecimento à Elisabete por nos ajudar e nos representar tão bem. Você fez toda a diferença. Obrigada!
Atualização: Infelizmente Elisabete faleceu em 2018 devido a um Câncer. Ficará sempre em nossa memória.
Atualização: Infelizmente Elisabete faleceu em 2018 devido a um Câncer. Ficará sempre em nossa memória.
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